No inicio de 2008, em um evento para cerca de 3000 pessoas, Hector Núñes, presidente do Walmart no Brasil, apareceu em um vídeo com uma fantasia azul. O vídeo foi criado para promover o uso racional de água entre os funcionários e fez parte dos incentivos aos Projetos Pessoais de Sustentabilidade. Durante a aparição Núñes se autodeclarou o “capitão-água”. O fim da água potável no planeta é uma preocupação constante e, de certo modo, válida, uma vez que se isso ocorrer a vida torna-se inviável. No entanto, em um cenário menos catastrófico e mais realista, a água não deve acabar nem a vida deve tornar-se inviável (ao menos para as espécies mais chatas como pernilongos e carrapatos!). Mas, possivelmente, a água daqui uns anos será mais escassa e inúmeras consequências negativas devem ocorrer. Diante disso, qual é o grau de importância que cada funcionário que assistiu à palestra atribui ao uso racional da água e quão válido é o presidente do Walmart se autodeclarar “capitão água”?
Economizar água é um importante ato em benefício do ambiente. Entre os seres vivos a hidratação é uma condição necessária para a ocorrência de reações metabólicas, e uma vez que nenhum organismo é impermeável, seu conteúdo de água necessita de reabastecimento contínuo (Begon et al 2008). Qualquer um que já tenha se arriscado a dar uma corridinha, já deve ter sentido a importância da reidratação.
A cada quantidade de água desperdiçada, menos organismos terão possibilidade de se reidratar. Os prejuízos da não reidratação são a diminuição da aptidão de alguns organismos ou morte de outros. Assim, quanto maior a quantidade de água desperdiçada, maior será o número de indivíduos perdidos. Seria o mesmo que imaginar que, em uma maratona, quanto menos pessoas se reidratam, menos chegarão ao final da prova.
Na natureza, a perda constante de indivíduos pode tomar escala de populações. População é um grupo de indivíduos da mesma espécie que vive em certo local. Cada uma apresenta um tamanho que está principalmente relacionado à quantidade de recursos disponíveis no ambiente. O tamanho das populações tende a apresentar pouca variação; de certa forma, apenas variam quando existem modificações no ambiente. Assim, se há uma diminuição na quantidade de recursos (como por exemplo, a água), a população tenderá a diminuir. Uma população que perde muitos indivíduos não está com boas perspectivas! Além da sua extinção local, a diminuição da quantidade de recurso em uma escala maior pode ocasionar a extinção de uma espécie.
Conservar a água é apenas uma das muitas maneiras que existem para não diminuir a quantidade de recursos para os seres vivos. A proteção de forma holística dos seres vivos e das suas interações é chamada de conservação da biodiversidade. Esse foco de estudo, embora já tivesse sido abordado por algumas pessoas, frentes exotéricas ou religiões, foi sintetizado em forma de estudos científicos na década de 80 com o primeiro volume da revista científica Conservation Biology (Meffe et al 2008). A Biologia da Conservação surgiu como proposta multidisciplinar, Soulé (1985), por exemplo, coloca cerca de 11 ciências interagindo. As disciplinas vão desde biogeografia de ilhas e evolução até filosofia e ciências sociais.
A abordagem entre diversas disciplinas causa alguma incerteza para tomadas de decisões. Como existem certos vazios de conhecimento entre todas as disciplinas, muitas vezes são tomadas decisões através de modelos preditivos não acurados. Tal característica coloca a Biologia da Conservação como uma disciplina de “crise” (Soulé 1985). Contudo, a abordagem multidisciplinar traz certa dinâmica e permite diversas adequações aos problemas reais. As soluções para a conservação da biodiversidade podem, por exemplo, depender de decisões pessoais.
A liberdade para modificar o mundo exterior é uma escolha pessoal. No entanto, a personalidade é fruto da concretude da vida social e de um processo histórico (Loureiro, 2009). Não deixar a torneira aberta no período em que se está escovando os dentes ultrapassa o grau da individualidade. A ação torna-se um ato de reflexão dentro da rede social e pode ter um efeito replicador. Os 11,5 litros de água que cada funcionário do Walmart pode economizar, fechando a torneira enquanto escova os dentes, provavelmente, não serão suficientes para uma espécie não ser extinta. Entretanto, os atos isolados podem tornar-se importantes movimentos sociais que juntos trarão consequências para a conservação da biodiversidade e para o bem estar humano.
O poder da sociedade em redirecionar as modificações na biodiversidade e de lutar pelo bem estar e pela saúde humana faz parte de um dos conceitos de sustentabilidade (Freitas et al 2007). Ultrapassando a Biologia da Conservação, a sustentabilidade entrelaça a conservação do meio ambiente e a qualidade devida humana.
O desenvolvimento econômico também está relacionado com a sustentabilidade; ele é a chave para a qualidade de vida humana. Em uma visão um pouco diferente da economia neoclássica, tal desenvolvimento é tratado como uma melhora na qualidade, sem aumento do uso de recursos. Há uma analogia bem interessante feita por Dayle (2007): no momento em que você decide melhorar a qualidade de sua pequena biblioteca de livros de receitas herdada pela sua tia-avó, ao invés de apenas completar com novos livros, é possível substituir os livros velhos por livros novos, com isso a quantidade de livros ficaria a mesma (talvez sua tia-avó fique chateada!). A ideia do desenvolvimento econômico com sustentabilidade (ou o desenvolvimento sustentável) é diminuir a quantidade do uso de recursos do ambiente conservando a biodiversidade e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade de vida humana.
Hector Núñes provavelmente não irá colocar uma capa vermelha e, ao menor chamado, ir impedir o gasto desnecessário de água. Contudo sua atitude pode ser uma importante fonte replicadora. Por estar na posição de presidente do Walmart, qualquer ação que modifique hábitos diários da organização e dos consumidores é sempre representativa. A redução do consumo de água pelo Walmart e a exposição do tema para os consumidores, pode ser um importante fator de conservação da biodiversidade e um aumento na qualidade de vida para pessoas. Embora, seria de bom grado, se a fantasia estivesse um pouco menos colada no corpo.
Bibliografia:
Daly, H. Ecological Economics and Sustainable Development – Selected Essays of Herman Daly. Ed. EdwardElgar Publishing. 2007. 270p.
Freitas, C. M.; Schüz, G. E.; Oliveira, S. G. Environmental sustainability and human well-being indicators from the ecosystem perspective in the Middle Paraíba Region, Rio de Janiero State, Brazil. Cadernos deSaúde Pública, n. 23. 2007
Loureiro, C. F. B. Crítica ao Fetiche da Individualidade e aos Dualismos na Educação Ambiental. In: Loureiro (Org.). Educação Ambiental, Gestão Pública, Movimentos Sociais e Formação Humana. Ed. Rima. 2009. 165p.
Meffe, G. K.; Carroll, C. R.; Groom, M. J. What is Conservation Biology?. Cap 3. In: Groom, M. J.; Meffe, G. K.; Carroll, C. R.(orgs). Principles of Conservation Biology. 3° Ed. 2006. 793p.
Soulé, M. E. What is Conservation Biology? BioScience, vol. 35 n. 11. 1985
Rafael Morais Chiaravalloti, biólogo e mestre em Desenvolvimento Sustentável.
Livro: “Escolhas Sustentáveis: discutindo biodiversidade, uso da terra, água e aquecimento global” com Cláudio Pádua, Editora Urbana, 2011, 169 p.
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