Muito antes dos termos ecologia e meio ambiente serem formados, reconhecidos e esclarecidos tais como conhecemos atualmente, um importante e influente político do cenário brasileiro, chamado
José Bonifácio de Andrada e Silva – homem que entrou para a história como o
Patriarca da Independência do Brasil, estava prestes a dar um salto em nosso país a um forte e pioneiro movimento de protesto para com as injustiças acometidas em nossa natureza naquela época, que era e foi destruída aos montes, com a vaga ideia de
“aqui e agora”, sem levar em conta o amanhã. Muito a frente do seu tempo, foi um líder que
“inovou ao passar do naturismo para o ecologismo, superando a admiração passiva da natureza para incorporá-la racionalmente a um projeto de nação*”. Além de ter sido também o primeiro cientista desta terra a fazer pós-graduação no exterior. Era um iluminista na guerra contra o atraso.
Uma personalidade diferente e perspicaz no meio histórico nacional. “Avesso à democracia, contra a escravidão e a favor do uso racional da natureza*”; “Primeiro político a integrar a ecologia em um projeto nacional, um ecologista muito à frente do seu tempo**”. Este foi Bonifácio, o qual pode ser atribuído o epíteto de Patriarca da Ecologia do Brasil.
Nascido em 13 de junho de 1763, em Santos, filho de um fazendeiro rico, José Bonifácio estudou em São Paulo, no Rio e, com 20 anos (1783), foi cursar Direito e Ciências Naturais na Universidade de Coimbra, em Portugal. Em 1789, entrou para a Academia de Ciências de Lisboa, onde defendeu o trabalho Memória sobre a Pesca de Baleias e Extração de seu Azeite. No ano seguinte, foi mandado para estudar Mineralogia e Silvicultura na França e na Alemanha – foi o primeiro cientista brasileiro a fazer pós-graduação no exterior. Em Paris, assustou-se com o radicalismo da Revolução Francesa. Em Freiberg, virou amigo do naturalista Alexander von Humboldt. Na Suécia e na Noruega, descobriu quatro espécies e doze novas variedades de peixe.
Viveu 36 anos na Europa. Casou-se, voltou a Portugal, foi inspetor de minas, diretor de reflorestamento e professor em Coimbra até a invasão das tropas de Napoleão, em 1808 – que forçou D. João VI a ir para o Brasil. Bonifácio ficou em Lisboa. Lutou contra os franceses no exército português e chegou a tenente-coronel. Retornou ao Brasil em 1819, com 56 anos, pensando em se aposentar. Mas a independência atropelou seus planos.
“Quando ele chegou”, conta José Augusto Pádua, “fez uma longa viagem pelo interior de São Paulo, acompanhado dos irmãos. Foi um choque. Ele voltara ao Brasil da sua juventude, cheio de nostalgia, e deparou-se com a escravidão, a perseguição aos índios, o desmatamento, o desperdício. Foi aí que começou a pensar num projeto para o Brasil que valorizasse a natureza”.
Um profeta contra o desmatamento
Como vice-governador de São Paulo, José Bonifácio tentou frear a destruição das florestas e fez previsões sombrias, como no excerto abaixo:
“Nossas terras estão ermas, e as poucas que temos roteado são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão deconhecidas ou mal aproveitadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favorecem a vegetação e alimentam nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos da Líbia. Virá então esse dia, terrível e fatal, em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos”.
(José Bonifácio, Representação à Assembleia Geral Constituinte do Império do Brasil sobre a Escravatura, 1823)
A evolução da destruição das áreas de matas virgens do Estado de São Paulo:
(florestas intocadas, virgens, originais de nosso território, que antigamente existiam numerosas e frondosas)
1763 – Quando José Bonifácio nasceu, 81,8% do território de São Paulo era coberto de matas.
1854 – No reinado de D. Pedro II, as queimadas e a expansão da lavoura diminuíram a área de florestas para 79,7%.
1886 – No fim do Império, as queimadas, a cana e o café tinham encolhido as matas para 70,5%.
1920 – A expansão do café e das ferrovias movidas à lenha aceleraram a redução da floresta para 44,4%.
1952 – Quando o uso de fogão à gás generalizou-se, em 1955, a demanda de lenha já tinha reduzido a floresta para 18,2%.
1973 – Com proteção ambiental deficiente, apenas 8,3% da cobertura florestal restou – permanecendo até hoje (comparando “antes e depois”, o que sobrou é uma míngua que dá dó de ver: em 210 anos, a área verde do Estado de SP encolheu em 9,85 vezes).
FONTE: Reconstituição da Cobertura Florestal do Estado de São Paulo. A.C. Cavallii, J.R. Guillaumon e R. Serra Filho, Instituto Florestal de São Paulo, 1975. Atlas da Evolução dos Remanescentes da Mata Atlântica. SOS Mata Atlântica, 1993.
Muita terra para incendiar
O principal instrumento agrícola do Brasil foi a queimada
Fazenda desmatada para o café em Magé, Rio de Janeiro. O quadro do pintor J.J. Steinmann mostra a derrubada da floresta da Mata Atlântica.
O desperdício nos métodos de mineração colonial motivou José Bonifácio a estudar Mineralogia, na Europa, e propor reformas à Coroa portuguesa. Mas, em 1820, ao voltar o Brasil, foi o desmatamento e os problemas sociais que chocaram o cientista. A expansão da lavoura do café desmatou as terras altas do Rio de Janeiro e entrou em São Paulo pelo vale do rio Paraíba do Sul. As queimadas para a instalação de cafezais transformaram o noroeste de São Paulo e entraram no Paraná, no século XX. Acabaram com quase tudo o que restava da Mata Atlântica.
Um cientista sequestrado pela política
Em 1820, estourou a Revolução Constitucionalista do Porto e D. João VI teve de voltar para Lisboa. Deixou no Rio de Janeiro seu filho, D. Pedro, como regente. Também convocou eleições para os governos das províncias e para uma Assembleia Constituinte. José Bonifácio foi chamado para presidir a eleição em São Paulo. Agiu tão bem que foi indicado para vice-governador. Em janeiro de 1822, foi nomeado ministro do Reino. Uma ascensão fulminante.
Nos dois anos em que foi ministro, tramou e consolidou a independência do Brasil. E tentou reverter a predação da natureza. Propôs a abolição (gradual) da escravatura e a introdução do trabalho assalariado no campo. Defendeu a reversão das terras não cultivadas à Coroa. Pediu reflorestamento obrigatório e preservação de um sexto das matas originais de toda propriedade. Quando era ministro, a Assembleia aboliu a doação das sesmarias, as propriedades que, desde o século XVI, o rei dava a grandes senhores, cujo tamanho médio era 43 quilômetros quadrados (27 Parques do Ibirapuera, em São Paulo!) – a origem do latifúndio no Brasil.
Foi ministro até julho de 1923, enfrentando, com severidade, tanto a oposição liberal quanto as tentativas portuguesas de retomar o Brasil. Em novembro, D. Pedro I fechou a Assembleia Constituinte e deportou Bonifácio, junto com outros deputados, para a França. Mas ao abdicar, em 1831, nomeou-o tutor de D. Pedro II. O patriarca da independência tinha 68 anos e pretendia acabar seus dias em pesquisas científicas, mas, mais uma vez, não pôde. Ainda viveu sete anos de agitação na corte. Em 6 de abril de 1838, morreu em casa, na Ilha de Paquetá.
O descobridor da andradita
“O patriarca da independência foi um dos maiores geólogos da sua época”, diz o professor Daniel Atencio, do Departamento de Mineralogia da Universidade de São Paulo. “Ele descreveu novas espécies de minerais num tempo em que não havia raio X para estudos de estrutura e a análise química era precária”. Mas eram todas espécies europeias. Nenhuma do Brasil. Aqui, ele não fez pesquisa alguma. A política não deixou. Existem 5 500 espécies e 30 000 variedades de minerais descritos no mundo, mas não param de surgir mais. Em 1799 e 1800, José Bonifácio descobriu as espécies petalita e espodumênio (valiosas porque contêm lítio, usado em ligas), a escapolita e a criolita. E, entre as variedades, descreveu a acanticone, a salita, a coccolita, a apofilita, a afrigita, a indicolita, a wernerita e a alocroita. Essa última foi renomada, em 1868, em sua homenagem, como andradita.
* Declarações do professor José Murilo de Carvalho, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Declaração do cientista político José Augusto Pádua, que em setembro de 97 defendia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro a tese de doutorado A Decomposição do Berço Esplêndido, a fim de investigar as raízes do ecologismo brasileiro.
Fonte: Artigo extraído e adaptado da Revista Superinteressante, Ano 11, n° 9 – Setembro de 1997. Pág. 47 a 50.
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