“O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs” (A Cidade, Chico Science e nação Zumbi)
Até algumas décadas atrás as cidades eram tidas como cidades de muros baixos. Sempre ouvimos de pessoas de gerações anteriores as nossas (a minha no caso) histórias de despreocupações, de portas e janelas abertas, e algumas na forma maliciosa de fofocas que corriam soltas. Parte de minha adolescência foi em uma vila que nem muro havia entre as casas (a Vila Amazonas). Eram as cercas vivas, constituídas em geral por miniecsórias, fileiras de pinhos ou eucalíptos. Uma vila planejada: saneamento básico, esgotamento, tratamento de água. Arborizada e às margens do rio Amazonas.
Mas isso foi antes de erguerem-se os muros e a cidade se verticalizar. Em Macapá-AP há uma lei (salvo engano) que proíbe a construção de prédios acima de 03 andares em uma determinada faixa de distância das margens do rio (foz do Amazonas onde se localiza a cidade). Outras partes da cidade que ficou na horizontal busca se resguardar atrás de suas muralhas e do isolamento (uma ilusão). As relações sociais deixam cada vez mais de exercer sua função salutar: disseminação de novidades (informação), porta-estandarte dos movimentos sociais e eixo motriz das transformações. É a “Lei do Muruci: cada um por si” (no máximo por sua família). E vamos “da alienação ao nepotismo, da omissão à barbárie“, deixando de ser a cidade interesse coletivo e passa a ser instrumento de negócios, dos mais variados. E ironicamente os que se mantém a salvo entre muros são os que mais sabem. Consequentemente “os mais desinformados são os que permanecem no rés do chão, expostos a um cotidiano de violência e desrespeito“.
Então não pude me furtar e pensar este momento que nos avizinha: eleições municipais. Haja vista que tudo se realiza nos municípios. Não vivemos na União, não vivemos nos Estados. Vivemos nas cidades dos municípios. Quem são nossos gestores? O que fizeram pela cidade? Não podemos continuar comparecendo como gado nas seções eleitorais. É preciso romper com essa concepção de curral eleitoral, ou como se diz em Cametá-PA: temos que furar esse cacuri!
Qual o compromisso de nossos gestores com nossa qualidade de vida, com as ruas, com o lixo, com a água, enfim, com o meio que vivemos? Lamento ouvir dos jovens (com frequência) que não gostam de política. Precisamos conhecê-los para cobrar o que dizem, sobretudo o que prometem, o que fizeram ou deixaram de fazer, seus vínculos e interesses, suas virtudes e vícios e o que isto pode significar para nossos municípios. É necessário que rompamos este círculo vicioso de cinismo, de deboche e desprezo pelo cidadão e a sociedade.
Não são apenas políticos, tecnocratas ou servidores públicos. Há os cidadãos que não cumprem seu dever. Ainda que por milagre surja um gestor à altura dos desafios que uma cidade impõe, há que se educar as novas gerações para livrá-los de maus hábitos e condutas nocivas que contaminam a nós. Esse político ideal haveria de ser gestor e educador, a fim de não se tornar mais um na trajetória sempre descrente do exercício do poder público.
Livre dessas amarras poderíamos voltar a correr entre as casas, saltando sobre as plantas entre os ipês e mangueiras nos quintais.
P.S.: Muruci (Byrsonima crassifolia), também conhecido como muruci, murici-da-praia ou murici-do-brejo, é uma árvore da família Malpighiaceae, ordem Malpighiales, nativa do norte e nordeste do Brasil.